A escola e a diferença: como andam as “questões de gênero e sexualidade”?

Nos últimos anos, de maneira significativa e sensível às mais dispersas audiências, debates e processos de mobilização popular em torno das — assim convencionadas — questões de gênero e sexualidade vêm assumindo uma relevância enquanto questão nacional — o que não significa, em absoluto, dizer que questões dessa ordem nunca tenham sido uma histórica preocupação de Estado. Os veículos de comunicação, da publicidade à televisão, passando por uma enorme variedade de outros meios, a comunidade acadêmica, o parlamento, em resumo, o espaço público, tem sido povoado por discursos e corporalidades que estão tensionando as estruturas e funcionamento das instituições sociais.

Sendo a escola uma das mais estratégicas e fundamentais instituições, costuma ser alvo de constantes — e nem sempre convergentes — disputas políticas e descontínuas vontades de regulação dos governos, atualmente vivenciamos situações como um cenário onde enfrentam-se defensores da agenda política de combate à chamada “ideologia de gênero” e profissionais e especialistas das mais diversas áreas mobilizados em nome da liberdade de cátedra e da elaboração de um sem número de experiências em políticas afirmativas. O próprio Ministério da Educação (MEC) foi palco de dramáticas reestruturações e medidas: em seis meses de governo assistiu-se ao congelamento de recursos, troca de ministros, flexibilização de regulamentações em materiais didáticos e uma série de outras medidas encaradas como problemáticas por muitos especialistas e profissionais da área.

O debate público levantado por movimentos como o “Escola sem Partido” está longe de ser extinto: em um processo que vai da queima de um boneco que representava a teórica dos estudos de gênero Judith Butler, em novembro de 2017, na cidade de São Paulo, à anulação de processo seletivo específico para pessoas transgênera(o)s e intersexuais em alguns cursos de graduação presencial da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), tem-se assistido como as questões de gênero e sexualidade em contextos educacionais mobilizam fortes setores da comunidade política nacional, desde civis e militares à parlamentares e grupos religiosos, em uma aliança com vistas a garantir a preservação de valores de ordem conservadora e tradicionalista.

O edital da Unilab e as “questões de gênero”: a quem pertence o direito à educação?

O processo seletivo anteriormente mencionado, aberto pela Unilab recentemente, no último dia 9 de julho, anunciava um edital de seleção específico para pessoas transgênera(o)s e intersexuais para 15 cursos de graduação presencial, nos campi do Ceará e da Bahia. Tratava-se de um chamamento público para ocupação de 120 vagas ociosas da universidade para serem ocupadas por pessoas transgêner(o)s e intersexuais, decisão tomada junto ao colegiado acadêmico e que expressa o desejo de fazer cumprir princípios da carta constitucional, bem como proporcionar real acesso à educação como um direito de todos os cidadãos da república, além de fazer valer a autonomia universitária, também abrigada pela Constituição

É importante evidenciar que não se trata de cotas em um vestibular, por exemplo, mas de política afirmativa frente à ociosidade de vagas nos quadros da universidade, um processo específico baseado em um memorial descritivo da(o) candidata(o) a serem referendados por instituições ligadas ao movimento LGBT+ na Bahia. Haveria também uma prova de redação em Língua Portuguesa, semelhante ao que foi feito antes, em justo ato de reparação estatal, às populações indígenas e quilombolas.

Em um parecer emitido pela Procuradoria Federal junto à Unilab, ficou determinado a anulação do edital, decisão acatada pela universidade, afirmando que entendia que a ação ia de encontro à Lei de Cotas e aos princípios de razoabilidade, proporcionalidade e de ampla concorrência em seleções públicas — contrariando o entendimento dos articuladores da proposta.

A professora doutora Luma Nogueira de Andrade, docente na universidade, travesti, uma das principais articuladoras do desenvolvimento e implantação deste processo seletivo junto à comunidade acadêmica da Unilab, tem chamado atenção para o mal aproveitamento dos recursos públicos e para o ataque à Constituição Federal que significa a anulação do edital.  Como diz em entrevista à DW Brasil:

 A universidade vai seguir as suas aulas tendo a possibilidade de ter mais pessoas sendo formadas para a própria sociedade. Isso é uma maldade, isso sim é ilegal, isso sim é pegar recursos públicos e jogar fora.

Os estudantes da Unilab iniciaram a ocupação de algumas dependências da universidade em reação ao cumprimento da medida por parte da Unilab, à intervenção do MEC e à manifestação subsequente da Procuradoria Federal, ambos mobilizados a partir de um tuíte do atual presidente manifestando indignação frente ao lançamento do edital.

Percebe-se, portanto, que a população LGBT+ vive um cenário politicamente instável e de horizontes potencialmente, violentamente retrógrados. Segundo dados de ONGs nacionais e internacionais de monitoramento de violação de direitos humanos, como a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e a TGEU (Transgender Europe), o Brasil lidera o ranking mundial em assassinatos às pessoas transgênera(o)s no mundo, ao mesmo tempo em que assiste ao surgimento de importantes figuras no cenário artístico, político, cultural e social que pertencem aos grupos LGBT+ e que movimentam questões de representatividade social, ampliando limites da experiência democrática, estabelecendo marcos legais para proteção social de vulneráveis e alimentando significativos setores da economia.

As populações transgênera(o)s, reconhecidamente alienadas dos processos de educação formal em função do estigma de suas diferenças, reconhecem o feito como mais um duro ataque à consolidação dos direitos humanos e como prenúncio de mais controle sobre as recentes e frágeis conquistas legais e sociais. Como podem, seguem resistindo.

Nesse sentido, há em curso um intenso trabalho de sensibilização de diversos e importantes segmentos sociais para as questões de gênero e sexualidade, sobretudo apoiadas na ampla discussão e veiculação de narrativas que evidenciam a experiência da marginalidade, de estigma social, vivenciado por essas populações: germinam aqui e ali, rodas de conversa, cursos, debates públicos online e offline, dedicados a oferecer uma possibilidade de repensar as práticas pedagógicas frente às mais diversas diferenças encarnadas por educandes* Brasil afora.

*:palavra neutra de gênero. A neutralidade de gênero na linguagem é um movimento que busca evitar o binarismo imposto pelos gêneros tradicionalmente aceitos pela sociedade (masculino e feminino). 


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Equipe

Adelaide Maria de Estorvo Alencar da Silva

Adelaide de Estorvo é educadora, bacharela em História pela UNESP, mestra em Ciências Sociais pela Unifesp. Pesquisadora também na área das artes bobas.

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