Uma boa história continua nos arrebatando e comovendo até hoje, tempos pouco arrebatadores ou mesmo comoventes. Ademais da tecnologia, da vida frenética e dos profundos dilemas que enfrentamos na vida contemporânea, uma boa história ainda é algo que nos toca, nos interessa, nos faz suspender o cotidiano e, quiçá, sonhar.
Nada indica que esta nossa ancestral necessidade de compartilhar e fabular o conteúdo de nossas e de outras histórias, perdeu ou perderá o encanto.
Estão aí as novelas, os filmes de super-heróis, as propagandas que nos emocionam, os best sellers, os grandes times de futebol e suas imensas torcidas, como provas cabais de que, muitas dimensões da experiência humana podem ser sustentadas, a partir do que consideramos ser uma eminente e inspiradora narrativa.
No entanto, e infelizmente, a padronização da sensibilidade, imposta pela homogeneização cultural que se engendra sob as determinações de uma cultura hegemônica, determina de maneira categórica e reducionista, quem e o que devem ser objetos de interesse estético, político e cultural.
Nessa medida, não há espaço para troca, apreciação e compartilhamento dos acontecimentos da vida ordinária, que sucumbe, em grau de relevância e interesse, aos padrões narrativos dominantes que excluem, ou até mesmo aniquilam, qualquer possibilidade de valorização de elementos de autenticidade presente na vida e trajetória das pessoas comuns.
Reforçando o caráter permanente, ainda que hoje constrangido, do profundo interesse mútuo entre os indivíduos, que forjou a convivência e o desenvolvimento da cultura humana, precisamos reabilitar espaços de criação, compartilhamento e valorização das narrativas dos nossos alunos, em sala de aula.
É preciso que as crianças e os jovens, possam aprender com suas próprias histórias, na medida em que as perspectivem e as re-inventem. Isso implica em uma capacidade de olhar para si mesmo, para o outro e para o mundo, sob as lentes de uma sensibilidade fulgurante, que seja capaz de renovar concepções e expectativas.
Os alunos precisam reconhecer em suas narrativas seus esforços e suas limitações, no entanto, isto não pode ser tido como uma ação estritamente lógica e crítica. A conscientização não é produto da simples racionalização. Ela acontece quando ocorre a mobilização integral da disposição sensível do sujeito, o que engloba entender e sentir na mesma proporção.
É preciso, portanto, que os espaços e as relações de aprendizagem estabeleçam conexões entre a realidade e o sonho, através da produção de experiências sensíveis imersas em elementos ficcionais, metafóricos e alegóricos, tanto quanto na vida concreta dos alunos.
A valorização da história de vida dos alunos, por si só, não garante os dispositivos necessários para que dinâmicas consistentes sejam instituídas, promovendo o aprofundamento do aprendizado.
É preciso que a narrativa do aluno passe por processos de deslocamentos, que deslindem suas trincheiras, sua poesia, seu terror, viabilizando a construção de perspectivas que deem conta de sustentar tanto a criação, quanto a destruição, como fenômenos intrínsecos ao processo de vida de qualquer ser vivo.
Em outras palavras, é preciso que os alunos consigam dispor de uma sensibilidade que possibilite o trânsito entre diversas derivas, o que solicita uma maior presença da irreverencia, do humor, da sagacidade, da coragem, de ousadia, para que o processo educativo não seja capturado pela repetição e pelo medo.
As histórias de vida dos alunos podem e devem ser colocadas na boca de super heróis, poetas, joaninhas, estrelas cadentes e vulcões. É preciso avançar no dilema moral que envolve re-significação do aprendizado, a partir do respeito e reconhecimento da narrativa de vida dos alunos. Elas, as narrativas, precisam ser retiradas do imaginário dos vencidos, que só podem aprender a partir da história dos vencedores.
Isto significa, portanto, a ampliação dos elementos que geram o processo de identificação entre aluno e proposta, que deve, por sua vez, abarcar e compor com a própria capacidade dialética crítica/criativa do aluno para entender e expressar sua narrativa de vida.
Mais do que reconhecer histórias importantes, precisamos compartilhar com nossos alunos, nossa capacidade de vislumbrar a exuberância e complexidade de qualquer narrativa e de qualquer narrador. Por isso falamos da necessidade de tornar o processo educativo um espaço de vivência alegórica, no sentido do acúmulo de metáforas que fertilizem o sentir e o entender, viabilizando a compreensão.
A seguir, a título de uma pequena demonstração, apresentaremos uma história e em seguida, apontaremos como ela pode ser trabalhada em sala de aula, com o objetivo de fornecer subsídios aos professores, acerca da discussão realizada no presente texto.
História: Edgar, o monstrão manquitola
Uma noite silenciosa e seca. Apenas o calorão rosnando entre um minuto e outro. Todos na pequena cidade de patotinhas estão com medo, porque sabem que em noites de muito calor, Edgar, conhecido como o terrível monstrão manquitola, sai de sua casa mal assombrada para refrescar-se, comendo luz gelada de postes. Nestes momentos, as ruas ficam no escuro e apenas os olhos das corujinhas ficam cintilando, feito luazinhas assustadas e tristes.
Edgar é um monstrão ainda jovem. Sua monstrice começou por causa de uma manquitação esquisita. Ele tem a altura de trinta e duas crianças, não gosta de tomar banho e cheira a murrinha iéka. Também não escova seus dentões e passa o dia inteiro mastigando musgolices cobertas de açúcar. Suas unhas dos pés são tão grandes, mas tão grandes, que escaravelhos muito chatos, montaram a comunidade dos escravelhos mal humorados nelas. Edgar não sabe ler e na escola deu muito trabalho às suas professoras monstras.
Neste dia, Edgar saiu pra comer luz elétrica e pisar nos rabos dos cachorros. Estava desaforado, com muita raiva de tudo e não sabia porquê. Não encontrou nada pela cidade, apenas a sua sombra abandonada em alguns cantos.
Ao voltar para casa, quando atravessou a porta quebrada, Edgar deu de topa com um visitante surpreendente. Ele havia esquecido uma frestinha de solidão aberta, e o visitante entrou por ali.
Era seu sonho de menino parado bem no meio de sua sala suja!!!
– Como se atreve a entrar aquiiiiiii!!!???? Gritou muito alto Edgar.
E, já estava preparando sua bazuca de lombrigas e piolhos, quando seu sonho de menino lhe disse:
– Gagá, eu sou seu sonho de menino e vim lhe tirar a maldição peçonhenta do cravo encapetado das pessoas amarguradas!!!
Edgar, monstrão terrível, não deu ouvido e foi pra cima do coitado. No instante em que foi, seu sonho de menino, numa manobra ninja que só os sonhos sabem fazer, lançou rapidamente um rabo de enguia, seguido de um tufão de fogo-fátuo e epifanias, que deixaram Edgar tonto de encanto.
O sonho então, se colocou sob os pés enormes do monstrão e retirou o espinho da amargura, que estava espetado na sua pata.
Nessa horinha Edgar parou de sentir dor e raiva!!!! Todos os seus sonhos vieram correndo e deram um escarpado duplo pra dentro do seu coração!!!
Edgar, voltou a ser tomado por seus sonhos e levou um baita susto!
Ele foi invadido por suas cores favoritas. Ficou surpreso como havia se esquecido que gostava de conversar e de fazer brigadeiro. Se sentiu estranho e começou finalmente a chorar, porque sentia falta de sua avó.
Depois de muitas emoções, Edgar sacudiu suas patonas, cafungou fundo e pela primeira vez em muito tempo, em seu íntimo, não estava desejando ser outra coisa, outra coisa qualquer como, por exemplo, um menino que todos julgassem normal.
Hoje, Edgar continua comendo um pouco de luz de poste gelada, afinal, depois de tanto tempo desenvolveu gosto pela coisa, mas, não pisa mais nos rabos dos cachorros. Ele desenvolveu uma monstrice muito autêntica, que inspira outros seres.
Ele está bem, pintou sua casa de colorido, gosta de tomar banho e de cortar as unhas. Já os escaravelhos chatos estão por aí…procurando novas unhas para invadir. Cuidado viu…
Sugestões de atividades:
- Teatro: Solicitar aos alunos a criação de personagens híbridos, que misturem características consideradas humanas e desumanas. Criar cenas curtas de suspense, com os personagens, a partir de temas como solidão e medo. Finalizar com roda de discussão sobre a atividade.
- Teatro de Sombra: Realizar um festival de teatro de sombras, onde os alunos sejam orientados a criar em duplas ou trios, um teatro de sombra que retrate seus medos e suas esperanças.
- Dança: Pedir aos alunos que respondam com uma criação de um movimento corporal, as seguintes perguntas: O que é esquisito? O que é o oposto de um monstro? Quando sinto medo? O que é um monstro? O que é beleza? Os movimentos devem ser feitos por cada aluno e depois repetidos pelo grupo. Ao final, monta-se uma coreografia com os movimentos criados.
- Zine: Criar zine que trabalhe o tema HUMOR e VERGONHA de maneira articulada, a fim de criar uma abordagem mais leve sobre temas relacionados ao medo e a solidão.
- Exposição: Criar uma exposição em miniatura, da cidade onde vivia Edgar, sua casa e seu Sonho de Menino.
- Vídeo: Por meio da técnica stop motion, por exemplo, produzir a história do Edgar, o monstrão manquitola, recriando outros finais, tais como: Final onde Edgar se torna mais amargurado. Final onde Edgar encontra um amigo. Final onde Edgar precisa de mais apoio e ajuda.
- Curta-metragem: Os alunos serão orientados a produzir vídeos com cenas mudas e cotidianas, que considerem estranhas. Deverão produzir um texto que acompanhe o vídeo. Finaliza-se a atividade com um de Festival de Curtas, onde poderão ser chamadas outras classes.
- Oficina: Solicitar aos alunos que inventem histórias inspiradas em seus medos e fantasmas internos. Após a criação das histórias, realizar uma oficina de criação de cartões postais, por onde serão despachados os medos e fantasmas. O destinatário do cartão postal deverá ser amplamente mediado, porque simbolizará o processo de enfrentamento e superação. Sugestão de destinatário: Poesia, Música, Amadurecimento, Amparo.
As atividades descritas, evidentemente, são apenas sugestões e podem e devem ser modificadas. Pensamos diferentes atividades, para que, na medida do possível, todas as faixas etárias possam ser contempladas.
Todas as atividades devem ser iniciadas com um cuidadoso e amplo debate, que deverá acompanhar todo o processo. Toda finalização, deve ser acompanhada por um processo de avaliação que promova o fortalecimento dos vínculos e a auto-crítica.
Toda iniciativa pode ser fadada ao fracasso se não estiver amparada e fundamentada de maneira consistente tecnicamente, ainda que a ideia e a intenção sejam boas. O que assegura a legitimidade e o bom desempenho de um processo é sua intencionalidade, mas também seu planejamento e organização.
O que de mais importante desejamos ressaltar, é a necessidade de engajar os alunos em processos que lhes permitam intensificar a qualidade de seu olhar sobre assuntos que são importantes acerca de como são construídos os elementos que compõem seus processos de formação humana e de vida.
Uma boa história e uma boa narrativa sempre nos fornecerão material para a vida e, portanto, para a educação. Aproveitemos!