Em 2019, trabalhando como educadora social em uma das unidades da Fundação Casa do estado de São Paulo, uma vivência despertou em mim diversos sentimentos. Ao chegar na sala de aula, deparei-me com a maioria dos meninos com um corte de cabelo diferente. “Elaine, tá bonito? Tá, mas que corte é esse? É o corte indinho. Corte indinho, como assim? Ah, é corte igual dos índios, tem agente que não gostou, mas não é bonito?” Fiquei perplexa e comovida.
Os adolescentes da Fundação Casa estavam, de maneira contundente, conectados ao que se passava no país naqueles dias. Eles “não sabiam” sobre as denúncias e debates relacionados ao massacre e a extrema violação de direitos pelos quais os indígenas sempre passaram, e que vêm se acirrando. No entanto, lá estavam eles, meninos com suas vidas também profundamente marcadas pela extrema violação de direitos, de repente com corte de cabelo inspirado em elementos da estética indígena. Qual não foi a minha comoção ao ver aquele bando de meninos me olhando, diretamente nos olhos, com os cabelos cortados em tigelinha, fazendo um convite silencioso para que juntos seguíssemos resistindo conforme podíamos.
Mas o que é isso de estar junto com quem, aparente ou provisoriamente, está impossibilitado de existir? Como se aposta na vitória, estando entre derradeiros perdedores?
A comunidade como catalisadora: o nascimento da UniFavela
Laerte, 23 anos de idade, morador da Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, aluno do curso de Letras na UFRJ, que para conseguir sua vaga na universidade estudou em um cursinho pré-vestibular comunitário, estava na biblioteca, que fica na mesma favela, quando uma estudante se aproximou e perguntou se ele poderia ajudá-la com algumas dúvidas de português.
Laerte auxiliou a menina e se dispôs a continuar tirando suas dúvidas no dia seguinte. Também estendeu o convite a outros interessados que ela eventualmente conhecesse. No outro dia, apareceram mais seis amigos dela. Com o tempo, foram chegando mais pessoas, impossibilitando o uso do espaço da biblioteca.
Após um mês sem aulas, ficaram desesperados, até que um aluno disponibilizou a laje de sua casa. Teve início então a Unifavela, em 2018. As aulas retornaram, agora sob o teto de telha de zinco, numa laje quente, e com mais professores — todos voluntários, todos favelados, praticamente todos estudantes cotistas de universidades públicas.
As aulas seguiram acontecendo, interrompidas ou canceladas de vez em quando por conta de operações policiais e tiroteios, sem dinheiro para o xerox, com muito calor e muita garrafa pet com água gelada, passando pelo sufoco de conseguir um quadro branco, que foi doado por um aluno e colocado em cima de uma pilha de tijolos.
Resultado das aulas, dos saraus, das campanhas para organização de cestas básicas literárias? Todos os 10 alunos foram aprovados em universidades públicas nos cursos de biologia, odontologia, geografia e letras. Em outras palavras, 100% de aproveitamento.
Bem, a gente tem mesmo que levar um susto com a UniFavela e com os adolescentes que estão dentro da Fundação Casa: ambos são oriundos de contextos de extrema vulnerabilidade social, são ou foram alunos de escolas públicas e ambos estão nos dizendo, conforme podem ou conseguem, através do corte de cabelo ou da autogestão de suas necessidades e sonhos, que somos nós que precisamos ter coragem de assumir questões fundamentais da educação popular.
O conteúdo dos relatos aponta, como fator determinante para o alto rendimento dos alunos na UniFavela em circunstâncias tão adversas, a existência de uma profunda identificação entre alunos e professores. E isso não aconteceu porque estavam favelados entre favelados. Pense nos adolescentes da Fundação Casa, que foram capazes de sentir, mesmo vivendo a restrição de sua liberdade.
O cerne da educação popular inscreve-se no estabelecimento de uma relação pedagógica onde ninguém ousa salvar ninguém, o que significa entender que o lugar do outro é legítimo e que é somente por meio mobilização deste lugar singular que podemos acessar os disparadores de potências que já se encontram ali e que serão, na falta de tudo, um tesouro inaudito de possibilidades, recursos e criação de acontecimentos, a partir de vias inusitadas.
Precisamos reavaliar nossa maior ou menor disposição e capacidade para desenvolver propostas que solicitem a reconfiguração dos espaços de aprendizagem, transformando os próprios territórios de vida dos envolvidos nas edificações necessárias para o exercício do saber socialmente crítico, nascido de subjetividades atravessadas pelo fortalecimento de correlações de forças coletivas.
A urgência que se coloca, portanto, é o estabelecimento de processos alinhados com as demandas dos envolvidos, não apenas no sentido de responder a estas demandas, mas de superação dos ciclos de precarização, através da composição qualificada, objetiva e eficiente entre educação, estratégias comprometidas com a inclusão social e valorização da potencialidade de todo e qualquer sujeito.
É quando conseguimos detectar como a vida vive entre nós — e não é entre eles, tem que ser entre nós — que conseguimos estabelecer situações de aprendizagem, processos formativos e vivências educacionais que acionam múltiplas possibilidades de enfrentamento, porque o elo se agiganta quando é composto da junção entre as múltiplas formas de estar vivo com. É esta pequena chama que interessa à educação popular, que não é boba. E o mais esperto é que esta pequena chama não está nos holofotes do poder e não pode ser apagada.
É sim uma defesa da educação que acontece quando um processo formativo desloca a falência do ensino oficial, impregnada da falta e do ressentimento, e recoloca a atenção ativa dos sujeitos entre si e, nesse sentido, voltada para os canais de força que podem enfrentar processos de exclusão social.
Os meninos da Fundação continuarão, a todo custo e até o último momento, com suas antenas poéticas conectadas, mesmo sem wifi. Os professores e alunos da UniFavela, apoiados em suas relações e em cacos de tijolo baiano, transformarão calor em energia térmica transformadora…vamos juntos?