As imagens podem ser usadas de muitas maneiras para (re)pensar práticas pedagógicas. São materiais que ajudam a intermediar ou mesmo construir o conhecimento. Produzir imagens e pensar por imagens podem ser ferramentas interessantes em sala de aula. Há inúmeros caminhos possíveis de se fazer este percurso, e as linhas que seguem vão privilegiar itinerários que nos levem ao pensar a construção e desmonte da imagem.
Produzindo imagens
Uma das questões interessantes para começar uma experiência com a imagem em sala de aula seria, justamente, pensar o porquê, nós, seres humanos, produzimos imagens. O que nos leva, desde tempos imemoriais, a produzir imagens, como os desenhos rupestres que se encontram, por exemplo, no acervo do Museu do Homem Americano, até as selfies que são postadas nas redes sociais como Instagram, Twitter, Tinder ou Facebook, nos dias de hoje?
Esta é uma pergunta que é possível ao cotidiano e que nos serve de estímulo ao pensamento com imagens. É uma prática social que está no cotidiano de quase todo mundo que tenha, no mínimo, um celular. Se no passado produzir imagens era algo difícil, caro, dispendioso, hoje temos amplo acesso a técnicas e tecnologias baratas e fáceis de produzir desenhos, fotografias, vídeos, colagens, gravuras.
Portanto meios não faltam para sua produção nas cidades, no campo, nas florestas, aldeias indígenas, quilombos, aldeias ribeirinhas, caiçaras. Em qualquer lugar pode-se utilizar imagens já prontas ou produzir as que são necessários para fins pedagógicos.
Imagem não é ilustração
O que é uma imagem, ou como poderíamos defini-la? Esta é uma questão que nos ajuda a entender os possíveis usos das imagens e porque as produzimos. O teórico das imagens Hans Belting nos informa que elas são objeto e que só podem ser produzidas e percebidas por um corpo vivo. Somente nós que estamos vivos podemos pensar, imaginar ou sonhar com imagens: são as imagens internas.
Além destas, o corpo ainda é capaz de produzir imagens externas e perceber outras que não foi ele quem produziu. As imagens internas podem ser muito influenciadas pelas externas, que produzimos ou percebemos. Desse modo a circulação de imagens ajuda a influenciar a imaginação, o imaginário, a memória, e o sonho.
Esta influência é um poderoso meio de propagar ideias e tem sido usada para criar narrativas oficiais pelo poder político desde tempos imemoriais.
Dito isso podemos concluir que imagens podem ter o efeito pedagógico de criar realidades que não existem e serem propagadoras de verdadeiras “fake news” do passado. Não dizem que uma imagem vale mais que mil palavras? Vejamos então a produção desta “fake” do século XIX.
A pintura “A Primeira Missa”, por exemplo, foi feita pelo catarinense Victor Meirelles a pedido do império. É preciso lembrar que Meirelles estudou e depois foi professor na Imperial Academia de Bellas Artes no Rio de Janeiro. Estudou na Europa e suas bolsas, na Itália e França, foram financiadas pelo Academia e o Imperador.
A Academia, como suas congêneres latino-americanas e europeias, tinha claras regras de como deveriam ser as pinturas históricas para que pudessem cumprir seu rigoroso apuro estético e sua narrativa ideológica.
À Meirelles fora encomendado que criasse uma imagem que veiculasse calmaria, pacificidade e harmonia, no momento mesmo de fundação de uma memória própria da nação. Desse modo, Schwarcz lembra que a tela foi produzida para servir como documento de identidade e nascença nacional: um atestado de nascimento.
Portanto a pintura tem uma origem, uma data e tem uma intenção. Ainda assim esse quadro não aparece nos livros didáticos como uma produção do século XIX, aparece como ilustração de um acontecimento do século XVI. Esse uso conservador da imagem, se não for acompanhado de uma boa legenda que informe sobre sua produção e intenção, pode passar a mensagem errada de que aquela cena aconteceu daquele modo.
O pintor se inspira na “história oficial” de nascença, a do encontro pacífico e harmonioso entre portugueses e indígenas, tendo o estado português e a fé católica como artífices da construção da nação.
Esta história era comprovada pelos historiadores da época pela narrativa da famosa Carta de Caminha. A cena da missa fora escolhida por seu professor Araújo Porto Alegre, que também exigiu que a natureza nacional fosse exaltada como moldura e monumento à nação, bem como a centralidade deveria girar em torno da fé cristã – representadas pelo corpo do padre – e do estado português – representados nas figuras dos conquistadores.
Já os indígenas estão representados como corpos passivos que observam a ação que vai construir a nova nação. Também as cores equilibradas em contrastes de claro e escuro – claro nos personagens centrais e escuro abaixo com os índios – ajuda a construir, plasticamente, uma cena de harmonia. Foi o quadro perfeito para o governo imperial que precisava mostrar unidade após tantos anos de conflitos internos.
A primeira missa foi recriada várias vezes por outros artistas. Um exemplo interessante é a recriação feita por Glauco Rodrigues, em 1971, auge da ditadura civil-militar. Numa época de exaltação do patriotismo pelos militares, Glauco, em uma atitude iconoclasta, neutraliza as figuras históricas e oculta a natureza como símbolo pátrio, ao mesmo tempo em que repensa o papel de outros corpos silenciados nessa narrativas – negros e indígenas.
A comparação entre as duas imagens é um método de pensar a construção e desconstrução da pintura e os momentos históricos de sua produção bem como as narrativas que estão inseridas.
O processo de Glauco pode ser uma ótima maneira de repensar narrativas oficiais em sala de aula e construir conhecimento a partir de imagens. Não apenas comparar imagens, mas as produzir pode ajudar no processo de construção crítica do conhecimento.