Crianças e adolescentes em meio a uma disputa sobre o futuro: a censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro

A edição de 2019 da Bienal do Livro do Rio de Janeiro foi palco de uma controvérsia que se propagou pelos veículos de comunicação da mídia brasileira e internacional, assim como em publicações em redes sociais.

Tudo aconteceu depois do pedido da prefeitura do Rio de Janeiro pela retirada de um volume de uma história gráfica (HQ) em que havia retratado o beijo entre dois jovens do mesmo gênero, personagens da história. Além do pedido, foram enviados fiscais da Secretaria da Ordem Pública da Prefeitura para averiguar e confiscar livros e outras publicações consideradas impróprias para crianças e adolescentes.

Com a divulgação massiva da ação nas redes sociais, a HQ foi esgotada nas primeiras horas do dia da Bienal. Além disso, um popular youtuber e influenciador digital realizou uma ação nos dias seguintes, em que distribuiu para o público, gratuitamente, mais de 14 mil exemplares com personagens LGBTQI em suas histórias. Durante a Bienal do Livro também foram realizados atos contra a censura e a LGBTfobia por parte do público e de ativistas.

A ação de censura da prefeitura do Rio de Janeiro igualmente teve desdobramentos no âmbito do sistema judiciário. Já no primeiro dia, a organização da Bienal do Livro entrou com um pedido para evitar o confisco de livros e teve uma preliminar garantida contra a censura de materiais, derrubada, no mesmo dia, mais tarde, pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a proibição da censura garantida pela primeira preliminar, em uma ação movida pela Procuradoria Geral da República (PGR).

Afinal: proteção para quem? 

Segundo um vídeo divulgado pelo prefeito do Rio de Janeiro em suas redes sociais, sua tentativa de censura se justificaria pela necessidade de “proteger as crianças” e que materiais impróprios para tal público deveriam estar embalados em sacos pretos com etiqueta de “conteúdo impróprio”. Na mesma semana, o governo do Estado de São Paulo havia pedido para que apostilas didáticas de alunos e professores fossem recolhidas sob a mesma alegação de proteger as crianças de informações sobre a diversidade de gênero e sexualidade. Atos de censura estão sendo realizados em nome da suposta ideia de uma integridade infantil que precisa ser protegida contra informações definidas como perigosas.

Mas pode-se perguntar: quais os efeitos da ingerência dos poderes públicos sobre a circulação ou interrupção de conteúdos informativos e formativos para crianças e adolescentes? Em primeiro lugar, deve-se considerar a imagem ideal da infância e da adolescência que se cria e a delimitação de quais crianças devem ser protegidas. Já é um tema bastante discutido por especialistas na área da educação e da diversidade de gênero e sexualidade que as crianças e adolescentes, enquanto coletividades, também são diversos.

A diversidade de gênero e sexualidade não é algo que acontece só na vida adulta, mas poder marcar a experiência das pessoas desde a infância. Desse modo, quando se mobiliza a retórica de proteção à criança e ao adolescente, pode-se ouvir igualmente que já está definido que aquelas crianças e adolescentes, cuja imagem não corresponde à de homogeneidade criada por tais discursos, não são merecedoras de proteção.

A promoção de informações sobre a diversidade é uma das maneiras mais eficazes de garantir a construção de relações pautadas pelo respeito às diferenças, necessárias para que se garanta, de fato e de modo amplo, a proteção de crianças e adolescentes. Isso é ainda mais importante quando se considera que o Brasil é um país com estatísticas elevadas de violência contra a população LGBTQI. Portanto, o sequestro da possibilidade de acesso a informações e a representações sobre a diversidade realizado por atos de censura podem vir a se configurar com uma forma de manutenção dessas estatísticas que infelizmente incluem crianças e adolescentes.

No entanto, cabe ainda refletir sobre um outro efeito das práticas de censura de informações destinadas a crianças e a adolescentes: o que isso revela sobre os projetos de futuro sendo disputados na atualidade? A concepção de que as crianças são o futuro da humanidade não é nova. E os contextos atuais impelem a pensar sobre que tipo de futuro busca-se possibilitar quando se caracteriza que crianças e adolescentes precisam ser protegidos da diversidade humana.

Quando furta-se da responsabilidade de discutir de maneira livre, honesta e bem informada sobre as diferenças de gênero e sexualidade que marcam a experiência humana, utilizando-se do argumento de que as crianças e os adolescentes precisam ser protegidos, elenca-se tais diferenças como perigosas, que precisam ser — se não combatidas e eliminadas — escondidas. Assim, desenha-se um futuro em que as diferenças não serão bem-vindas. E se o presente, como mostram os dados estatísticos, já se constitui como perigoso para todos e todas que existem como LGBTQI, imaginar tal futuro é certamente amedrontador.

De fato, precisamos proteger as crianças e os adolescentes. Mas precisamos protegê-los de um futuro que os coloca em risco. De um futuro que ameaça seu bem-viver, pois lhes nega conhecer e estar diante de um aspecto fundamental de sua experiência de vida: a diversidade. E essa proteção começa agora no presente, evitando que lhes roubem a esperança de viver num mundo melhor que o que já habitamos e recusando dizer para as nossas crianças e adolescentes que a diversidade não é uma possibilidade, ou só o é na medida em que não se revela, se esconde e permanece censurada pelos outros e por si mesmo.

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Equipe

Bru Pereira

Antropóloga, graduada e mestre em Ciências Sociais pela Unifesp. Durante o mestrado trabalhou com os cruzamentos possíveis entres teorias ocidentais sobre gênero e sexualidade e descrições etnológicas sobre esses temas. Se interessa pelos modos os quais o gênero se torna uma questão de interesse nas vidas das pessoas em diferentes contextos.

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