Entendemos que nenhuma proposta educacional, nenhum recorte de conteúdo, planejamento, atividade em sala de aula e critério de avaliação podem vangloriar-se de um status de neutralidade. Todos são permeados por escolhas. E escolhas são políticas: nossas aulas, nossas avaliações, ainda que em consonância com os documentos oficiais, têm recortes determinados por nossas experiências de vida, pelos lugares sociais que ocupamos, pelas nossas crenças, pelas visões de mundo que nos atravessam.
Saber das origens, da história de conceitos e de metodologias que embasam teorias e práticas educacionais às quais aderimos ou refutamos é um recurso importante para refletirmos sobre os valores que iluminam a nossa prática.
A velha história do ovo e da galinha: o que veio primeiro?
Tomemos a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e sua proposta de ensino-aprendizagem focados nas habilidades e competências como exemplo. Já em sua introdução, temos: “Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento”.
Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Além das competências gerais, o documento estabelece, também, as competências por áreas (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso).
A história do conceito, porém, diverge quanto ao seu surgimento. Segundo algumas informações, o pioneiro foi o psicólogo David Clarence McClelland (1917-1998), trabalhando para o governo norte-americano na seleção de diplomatas, ainda na década de 1970. A maior parte dos ensaios e estudos sobre competências, porém, desenvolveram-se na década de 1990, principalmente na França, e não necessariamente relacionados à teoria de McClelland. O que teria, então, formado uma “escola francesa” que relacionou as competências para o mercado de trabalho com o processo educacional.
Para os entusiastas das teorias de Philippe Perrenoud, sociólogo suíço, professor emérito da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Genebra, teria sido ele o pioneiro, desenvolvendo o conceito e a “pedagogia da competência” voltados para o âmbito escolar. A área de gestão empresarial é que, posteriormente, teria se apropriado do conceito e de seus estudos.
E no Brasil?
No Brasil, o estabelecimento das competências como referências para os currículos na educação básica resultou de disputa entre diferentes propostas, iniciadas quando da aprovação da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996. Nesse período, com base na pedagogia da competência, muitos países fizeram suas reformas educacionais, orientados por organismos internacionais como a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e o Banco Mundial. Segundo os críticos, essa seria a chave para detectar a influência dos interesses econômicos/empresariais sobre as políticas educacionais.
O Brasil relaciona-se com a OCDE na área educacional pela participação do país, desde o ano 2000, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA – sigla do inglês), programa que avalia, a cada três anos, os alunos da educação básica na faixa dos 15 anos, estabelecendo os indicadores do desempenho das competências dos estudantes. Considera-se que a divulgação desses resultados pela OCDE sinaliza variáveis que interessam às empresas para decidirem onde investir, como por exemplo, o grau de qualificação da mão de obra ou o impacto da qualidade escolar na produtividade do trabalho.
O que diz Perrenoud?
Pode-se dizer que a obra de Perrenoud foi uma das principais referências para a elaboração da BNCC, como tem sido nos estudos em toda rede de educação básica para sua implantação.
Frente ao embricamento entre os interesses empresarias e dos organismos econômicos internacionais com as políticas educacionais, teríamos uma desqualificação da educação escolar centrada no desenvolvimento de habilidades e competências? Perrenoud esclarece:
…seria ingênuo combater o método das competências sob o pretexto de que o mundo econômico sonha com robôs dóceis, com autômatos bem programados. A realidade é mais complexa. As empresas têm necessidade de um investimento subjetivo, a nova organização do trabalho requer de uma parcela crescente dos trabalhadores que assumam responsabilidades, façam projetos, envolvam-se, sejam cooperativos, imaginativos, autônomos…
Temos então a demanda econômica por competências de alto nível. Contudo, será que a escola, ao voltar-se para o desenvolvimento do senso de responsabilidade, da capacidade de iniciativa, da autonomia, da solidariedade não estaria sendo, como diz o próprio Perrenoud, “uma escola humanista e desejosa de dar a cada pessoa os meios para pensar por si mesma?”
Como superar essa ambiguidade?
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que os objetivos da escolaridade dependem de uma escolha. Assim, a formulação das competências nunca é ideologicamente neutra. É preciso analisar os currículos. É preciso também refletir constantemente sobre a nossa própria prática como educadores. Examinar(nos) detalhadamente: Que tipo de seres humanos se pretende formar? Estamos preparando seres humanos submissos ou livres?
Enfim, as habilidades e competências que estamos trabalhando estão a serviço de quê?
Para Perrenoud, elas devem estar a serviço da formação de “indivíduos críticos, que querem e podem tornar-se atores, defender seus interesses, explicar e combater os mecanismos que engendram a violência, a miséria, a exclusão. Isto exige não só conhecimentos econômicos, jurídicos, tecnológicos, científicos, sociológicos, mas também competências de análise, de negociação, de coordenação, competências táticas e estratégicas. Não falo aqui de um treinamento para a guerrilha, nem de uma formação técnica de militantes, sejam políticos, sindicais, ecológicos ou defensores dos direitos humanos. Falo de uma capacidade muito mais geral para analisar e fazer evoluir as relações de força nos grupos, nas organizações, nos sistemas sociais”.